‘Desleixo’ de Estados com presídios ‘beira o crime contra a humanidade’, diz ministro da Justiça
Reduzir a violência e integrar presos à sociedade é um “desafio brutal”, diante da “incompetência” e “desleixo” dos Estados e do aumento exponencial da população dos presídios.
A afirmação acima é do ministro da Justiça, Torquato Jardim. Procurado pela BBC Brasil para falar sobre o motim ocorrido na segunda-feira, primeiro dia do ano, em Aparecida de Goiânia – que deixou nove mortos, 14 feridos e 99 foragidos -, ele disse que o governo de Goiás não “aplicou como devia” os recursos federais do Fundo Penitenciário Nacional transferidos ao Estado nos últimos anos.
Segundo Jardim, o governo federal tem investido em programas em busca de soluções para o problema, mas nem todas as administrações estaduais têm feito a sua parte.
Em 2017, foram repassados pelo governo federal R$ 1,2 bilhão aos 26 Estados e ao Distrito Federal para a construção de novas unidades e modernização de presídios, diz o ministro.
Mas, até o final do ano passado, foram gastos 4% dessa verba. Cada governo estadual recebeu R$ 44,7 milhões – Goiás, por exemplo, investiu R$ 7,7 milhões.
“Goiás, entre 1999 e 2015, recebeu quase R$ 90 milhões de reais. Em 2016, recebeu mais R$ 44 milhões e não fez a aplicação que devia no sistema penitenciário. Esse motim é reflexo. Falta uma decisão política clara dos governadores de resolverem a questão presidiária”, criticou Jardim.
Procurado pela reportagem, o governador Marconi Perillo (PSDB) rebateu as afirmações do ministro. Em nota, ele afirmou que o Estado investiu R$ 3 bilhões em recursos próprios no sistema carcerário.
“No dia e hora que ele (Torquato) desejar, vou provar de onde parte o desleixo. O (investimento da União) é muito pouco, apenas 1% de todo o nosso investimento.”
Para especialistas, a responsabilidade pela crise no sistema carcerário do pais é, na verdade, de ambas as esferas: estadual e federal.
Professor da Fundação Getúlio Vergas (FGV), Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirmou que falta ao Executivo federal capacidade de liderança para coordenar uma política pública nacional voltada ao sistema prisional. E os Estados, acrescentou, carecem de capacidade técnica para gerir os presídios.
“Falta coordenação entre as esferas de poder. Todos têm um pedaço de responsabilidade e ninguém é responsável por tudo. É aquela história de que a culpa é do síndico, então a culpa acaba recaindo sobre governadores. Mas isso é em parte injusto.”
‘Crime contra a humanidade’
O ministro da Justiça vai além nas críticas aos governadores. Segundo ele, algumas gestões estaduais “sumiram” com a verba do Fundo Penitenciário Nacional.
“O desleixo dos governos estaduais com o sistema carcerário beira o crime contra a humanidade. O Funpen (Fundo Penitenciário Nacional) destinou R$ 1,2 bilhão para os Estados aplicarem em construção e manutenção dos presídios. E o que eles fizeram com o dinheiro? Em quatro Estados, o dinheiro sumiu”, disse.
Questionado pela reportagem, ele não quis especificar quais Estados “sumiram” com os recursos. O relatório de gasto das verbas de 2017 do Funpen mostra que 18 governos movimentaram pequenas fatias da verba, enquanto oito não usaram nem sequer um tostão.
Pelas regras, os Estados teriam que devolver os recursos, mas o governo federal publicou uma portaria permitindo que o dinheiro seja gasto até dezembro de 2018.
“Nós fizemos uma tolerância. Baixei uma portaria autorizando o gasto do dinheiro até 31 de dezembro de 2018. A partir daí, terão que sofrer as consequências”, disse Torquato Jardim à BBC Brasil.
O secretário de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, Cesar Schirmer, culpa a “burocracia” pelas dificuldades de os Estados usarem os recursos do Fundo Penitenciário. Segundo ele, uma resolução do Ministério da Justiça impõe uma série de regras específicas para a construção de novos presídios.
“Os procedimentos burocráticos não são feitos com a agilidade necessária. Isso não é só responsabilidade dos Estados”, afirmou à BBC Brasil.
“Tem uma resolução que estabelece tamanho grau de minúcias e detalhes que nenhum Estado consegue cumprir essa exigência, Cria-se tal detalhamento que, para elaborar o projeto e levar a cabo, é um parto. Enviamos o projeto para construir um presídio em Rio Grande em agosto. Em dezembro, quatro meses depois, o Depen nos retornou pedindo alterações”, afirmou.
Massa carcerária
A rebelião que aconteceu em Goiás está longe de ser um caso isolado. No início do ano passado, casos ocorridos em prisões de Roraima, Amazonas e Rio Grande do Norte deixaram 120 mortos. E nada indica que esses episódios recorrentes de violência, em sua maioria causados por guerras entre facções criminosas, deixarão de se repetir.
A população carcerária cresceu 700% em 25 anos, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Hoje existem 727,5 mil presos e um deficit de 336 mil vagas – superlotação generalizada que dificulta o controle dos presos por agentes penitenciários e gera condições degradantes nas prisões.
O Brasil é o terceiro país com a maior população carcerária do mundo, apenas depois dos Estados Unidos e China, respectivamente. A Rússia vem em quarto.
“Nesses três países (EUA, China e Rússia), a taxa de população carcerária vem caindo, com a introdução de outras formas de responsabilização alternativas ao encarceramento, como prestação de serviços e multas”, disse à BBC Brasil a coordenadora-geral de Promoção da Cidadania do Departamento Penitenciário Nacional, Mara Fragapani Barreto.
“O Brasil está na contramão disso, com um crescimento anual da população prisional”, acrescentou.
Presos provisórios, ou seja, que ainda não foram condenados em definitivo pela Justiça, são 40%, da população prisional, segundo relatório de 2017 do Depen.
O Estado de São Paulo concentra 33,4% do total de presos do Brasil, com 240 mil presidiários. Segundo os dados, 55% dos detentos do país têm entre 18 e 29 anos de idade, e 51% não chegaram a completar o ensino fundamental.
“Grande parte dos presos é jovem, não tem nem o primeiro grau completo, vêm de famílias incompletas – não tem pai – e é pobre. Precisamos focar em recuperação e prevenção”, diz o ministro da Justiça.
Para Jardim, entre os desafios para conter a criminalidade e a violência nas cadeias estão a carência de agentes de segurança e penitenciários em alguns Estados, e a eventual aprovação de projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional que visam ampliar o acesso a armas.
Um deles permite que guardas municipais portem armas até fora de serviço. Outra proposta reduz para 18 anos a idade mínima para adquirir uma arma.
“Nenhum país ganhou paz social ampliando armamento. E tem todo um conjunto de projetos (de lei) que dificultam. Se juntar esses fatores, é um desafio brutal. E você tem a corrupção e a incompetência dos Estados”, afirmou o ministro.
O custo de novas vagas
A manutenção de cada preso custa, em média, R$ 2,4 mil por mês aos cofres públicos, e cada vaga criada custa aproximadamente R$ 45 mil, devido às exigências de materiais que evitem fuga, como paredes fortificadas.
Presos por crimes contra o patrimônio, como roubo e furto, predominam nas cadeias brasileiras – são 50% do total. Outros 26% praticaram tráfico de drogas e 12%, crimes contra a vida, segundo a coordenadora do Depen.
Uma grande preocupação é a alta taxa de reincidência. Segundo o Ministério da Justiça, dois terços dos presos voltam a cometer crimes.
Para Mara Barreto, a solução para resolver o problema da superlotação e reduzir o número de presos que voltam a praticar delitos é efetivamente integrá-los à sociedade por meio de programas de capacitação e emprego.
Mas isso depende da participação de empresas e de parcerias com os Estados. Em dezembro, o Ministério da Justiça lançou um programa para promover parcerias entre empresas privadas e o governo estaduais. A ideia é criar unidades industriais dentro das cadeias, para que os presos possam trabalhar.
Em Santa Catarina, alguns presídios já operam dessa maneira. Na Penitenciária Regional de Curitibanos, 100% dos presos trabalham, afirmou Barreto.
As empresas que firmarem parcerias para dar emprego aos presidiários poderão usar um selo com a palavra “Resgata” em seus produtos, atestando que colaboram com reintegração de detentos.
“Existe uma cultura de repressão e vontade de vingança na sociedade. Mas, no Brasil, não existe pena de morte nem prisão perpétua. As pessoas que estão presas vão voltar eventualmente para a sociedade. Nós queremos ver como vizinhos uma pessoa melhor ou pior?”, destacou a coordenadora do Depen.
“A prisão por si só não diminui a violência. É preciso integrar essas pessoas à sociedade para que não voltem a cometer crimes.”
Para o presidente do Fórum Brasileiro de Políticas Públicas, Renato Sérgio de Lima, além de projetos para recuperação de presos, é preciso um trabalho coordenado em âmbito nacional entre os governos federal, estaduais e o Judiciário, para que realmente haja uma reversão da crise carcerária brasileira.
E o foco, segundo ele, não deve ser só em encarcerar e construir presídios, mas em penas alternativas para crimes mais leves, troca de informação entre instituições e maior eficiência no julgamento de presos provisórios.
“Não é que as instituições não estejam trabalhando, mas, sem coordenação e uma política penitenciária nacional, qualquer política incremental que seja adotada tende a se diluir”, diz.
“Medidas pontuais não dão necessariamente certo. A força de inércia de manter tudo como está é mais forte. Ou a gente rompe esse mais do mesmo ou não será possível quebrar esse ciclo.”
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