Os médicos de Mato Grosso estão trabalhando em seu limite. A falta de insumos, EPIs (Equipamento de Proteção individual), medicamentos e leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva) têm preocupado a classe trabalhadora que atua na linha de frente no combate à pandemia da Covid-19 (coronavírus).
O Sindicato dos Médicos de Mato Grosso (Sindimed), chegou a enviar um documento, no último domingo (21), para as Prefeituras de Cuiabá e Várzea Grande pedindo o lockdown, para evitar mais mortes em razão do vírus.
Mesmo com a quarentena coletiva obrigatória, sendo decretada pelos dois Municípios após decisão judicial, o diretor de Comunicação do Sindicato dos Médicos, Adeildo Lucena, afirmou ao MidiaNews que nada será resolvido enquanto os gestores “baterem cabeça” sobre a real situação do Estado.
“Agora com os casos aumentando consideravelmente, há a necessidade de que as pessoas se conscientizem para não só proteger a si, mas cuidar do próximo também. Isso é fundamental. Não podemos, também, atribuir à população uma situação dessa, quando os próprios governantes estão batendo a cabeça. Eles têm que ter um discurso mais próximo para que a população acredite”.
“O avanço da doença está sendo crescente nas últimas semanas. Então, agora seria o momento técnico para que se reduzisse essa transmissão, de forma a dar um fôlego para os serviços de Saúde, que estão lotados, abarrotados, tanto o público, quanto o privado. Isso não vai resolver completamente o problema e também não há garantia de que vá melhorar substancialmente, mas avaliando a curva de crescimento desde o início da pandemia até agora, vendo o número de óbitos, mais o número de vagas que temos de UTI, a gente realmente acha que é o momento” disse.
O mais preocupante, segundo Lucena, é ver colegas tendo que se afastar de suas famílias com medo de transmitir a doença, além dos profissionais de saúde que estão morrendo.
O profissional também falou sobre a necessidade em dar mínimas condições de trabalho e o que poderia ser feito caso a Saúde entre em colapso e falte médicos para atuar.
O Sindicato dos Médicos entende que este é o momento em que não podemos perder o tempo e esperar uma situação mais calamitosa para vir a decretar e não tenha mais como ser corrigido
Leia os principais trechos da entrevista:
MidiaNews – Nesta semana, a Justiça decretou uma quarentena obriagatória em Cuiabá e Várzea Grande. Essa medida veio em boa hora?
Adeildo Lucena – O Sindicato dos Médicos pediu que fosse decretado o “lockdown” porque temos hoje um limite, nós alcançamos o limite do número de vagas disponíveis em leitos de UTI no Estado. O avanço da doença está sendo crescente nas últimas semanas. Então, agora seria o momento técnico para que se reduzisse essa transmissão, de forma a dar um fôlego para os serviços de Saúde, que estão lotados, abarrotados, tanto o público, quanto o privado.
De repente, nós podemos chegar a um caos, estourar realmente todos os limites e não conseguirmos atender nem no setor público nem no privado as pessoas acometidas pela Covid e por outras doenças. Então o momento é agora, nessa semana. Por quanto tempo? Isso vai depender dos dados que virão. Ele nos dirá, mas aproximadamente seria de 10 a 15 dias.
Seria uma coisa mais rigorosa, no sentido de dar um fôlego. Isso não vai resolver completamente o problema e também não há garantia de que vá melhorar substancialmente, mas avaliando a curva de crescimento desde o início da pandemia até agora, vendo o número de óbitos, mais o número de vagas que temos de UTI, a gente realmente acha que é o momento. Mais para frente pode ocorrer o que tememos: não ter onde colocar as pessoas, não ter vaga de UTI, não ter vaga de enfermaria e não ter profissional em número suficiente para dar o atendimento adequado. Isso gera um problema bastante sério. Vai chegar em um ponto em que as pessoas vão ficar completamente desassistidas. A gente pensa no que pode vir a acontecer, em que chegue um momento em que o sistema de Saúde não vá suportar.
Claro, o contexto tem que ser avaliado pelo prefeito Emanuel Pinheiro. Ele tem todo o direito de recorrer de uma decisão judicial e tomar uma decisão. Ele é o responsável, ele e a sua equipe. O Sindicato dos Médicos entende que este é o momento em que não podemos perder o tempo e esperar uma situação mais calamitosa para vir a decretar e não tenha mais como ser corrigido. Os nossos recursos estão se esgotando. Então eu afirmo que o sindicato não quer que esgote para decretar o lockdown. O Sindicato dos Médicos quer que tome essa medida antes que isso aconteça. E mesmo assim pode acontecer quanto mais o tempo passar. Se essa curva continuar ascendente, o problema vai se tornar maior ainda.
MidiaNews – Como avalia a política adotada pelo prefeito Emanuel Pinheiro de fechar tudo no dia 20 de março, quando havia apenas um caso em Cuiabá, e depois permitir a abertura quando os casos avançavam?
Adeildo Lucena – Dentro daquela mesma perspectiva, de que o prefeito avalia a situação e toma uma decisão. Qual era a ideia inicial? Muito boa: você fecha e se prepara para quando vier a onda forte. Para que quando os casos aumentarem, você estar preparado. Foram quatro meses para se preparar, para organizar o serviço público de Cuiabá, para atender a demanda, que a gente já sabia que seria muito grande nesses meses de junho, julho e agosto, que é quando os problemas respiratórios acometem mais os mato-grossenses.
A ideia era ter feito o isolamento social, para que o gestor público tivesse condições de preparar o Município para o que está acontecendo agora. Pelo que o CRM (Conselho Regional de Medicina) apontou, o Município não fez o dever de casa. Não dá para entender por que fechou lá atrás e não se tomou as devidas providências. O tempo é o senhor da razão e ele vai mostrar, a máscara vai cair. Nós estamos vendo a curva ascendente, os números de mortes aumentando a cada dia, os leitos de UTI no teto, as dificuldades para transferir um paciente hoje para um hospital é bastante grande, os médicos estão com muita dificuldade com relação a isso. Agora nos próximos 15 dias teremos a resposta, se a Prefeitura fez o dever de casa dela.
A ideia era ter feito o isolamento social, para que o gestor público tivesse condições de preparar o Município para o que está acontecendo agora. Pelo que o CRM apontou o Município não fez o dever de casa
MidiaNews – Como estão as condições de trabalho nas unidades de saúde? Qual é a principal queixa dos médicos?
Adeildo Lucena – Na atenção primária, que são as unidades de saúde da família, nos postos e centros de saúde, sempre trabalhamos com as mínimas condições. Em algum momento sempre falta algum tipo de material ou insumo, em algum momento sempre falta medicamento para controlar as doenças crônicas, os exames complementares com dificuldade, encaminhamento para especialista também. Na atenção secundária, que são as policlínicas, as UPAs (Unidade de Pronto Atendimento), o Pronto-Socorro, temos também dificuldade muito grande, ainda mais hoje por causa da pandemia da Covid-19. Temos escalas com furos, a Prefeitura sempre deixando de cumprir aquilo que promete para os médicos, em termos de pagamentos de plantões extras. É uma confusão muito grande na distribuição do prêmio da saúde, que até hoje não está devidamente regulamentado. E aí vem também de novo a falta de insumos, que reflete nas condições de trabalho, que são muito ruins e já vêm de longa data. A precarização do trabalho é grande, os médicos não tâm direito a férias, a 13º salário… Está bastante complicado. Sempre vivemos nessa situação, não há diferença nenhuma com a pandemia. A pandemia só fez descortinar um problema que já é crônico e de longa data.
Em algum momento sempre faltam máscaras de proteção, aquela que protege os profissionais de se contaminar, mas não há tanta reclamação como antes. Não ouvi falar de máscaras rasgando, porque essas máscaras N-95 não são fáceis de rasgar, a cirúrgica sim. As unidades estaduais estão mais bem providas de EPIs do que as municipais.
Midianews – O aumento no número de casos deve-se, também, ao comportamento de parte da população, que não se isolou como deveria. Como o senhor avalia o comportamento destas pessoas, que seguiram fazendo festas mesmo com orientação em sentido contrário?
Adeildo Lucena – Eu acredito que a grande maioria procurou seguir as regras de se proteger e proteger o próximo, mas é óbvio que sempre vamos ter aquelas pessoas que não se importam e que ainda não estão acreditando [na doença]. Agora com os casos aumentando consideravelmente, há a necessidade de que as pessoas se conscientizem para não só proteger a si, mas cuidar do próximo também. Isso é fundamental. Não podemos também atribuir à população uma situação dessa, quando os próprios governantes estão batendo a cabeça. Eles têm que ter um discurso mais próximo para que a população acredite.
MidiaNews – Imagina-se que o senhor tem conversado muito com os profissionais da linha de frente do combate à pandemia. Como está o estado emocional deles?
O tempo é o senhor da razão e ele vai mostrar, a máscara vai cair
Adeildo Lucena – Quem está na linha de frente está sofrendo uma pressão muito grande. Aquela pressão de você não ter muitas opções, muitos recursos, até pela própria ciência não ter os meios necessários. Além disso, você tem medo de se contaminar, contaminar sua família e é obvio que tudo isso vai afetar o psicológico do médico. A gente vive uma situação muito estressante. Para quem trabalha na linha de frente, ou na UTI ou no setor de internação, que são onde estão pacientes com Covid, realmente é um momento bem tenso. Fora as pessoas que você ainda têm que cuidar, porque é a sua função ali; isso é bastante desgastante. Então tenho percebido sim. Eu também trabalho na linha de frente, mas vejo os meus colegas viverem momentos de angústia, alguns até com as questões emocionais bem afetadas. Tendo dificuldades no plantão, precisando dar uma pausa… Porque você entra em uma UTI, coloca aquele capote e às vezes nem no banheiro consegue ir. Às vezes você esta no pronto-atendimento e não consegue descansar um pouco, ou ir no banheiro, ou almoçar. É realmente bastante estressante, a gente tem sentido os colegas com essa pressão sim.
MidiaNews – Na quarta-feira, o secretário estadual de Saúde Gilberto Figueiredo afirmou que existem médicos que, por desespero, estão deixando os hospitais, tamanha a pressão. E que entende a situação e que não pode condená-los por isso. O sindicato têm acompanhado estes casos?
Adeildo Lucena – Não é que abandonaram os hospitais. Imagina você trabalhar em um local estressante como esse e não ter uma compensação sequer financeira, porque reconhecimento nunca tivemos. O próprio secretário agora está acometido com a doença e está passando por momentos estressantes. Então abandonar, não, porque o médico não é treinado nesse sentido. Mas é óbvio que alguns podem realmente ter desenvolvido ansiedade ou transtorno do pânico. Isso é comum em qualquer profissão, ainda mais num momento como esse. A profissão médica sempre teve um índice muito grande de ansiedade, e até uma taxa bastante elevada de suicídio. Realmente é um momento ruim e é compreensível se acontecer de um ou outro, mas a maioria está firme e aguentando a pressão.
Quem está na linha de frente está sofrendo uma pressão muito grande. Aquela pressão de você não ter muitas opções
MidiaNews – Figueiredo também afirmou que tem vivido os piores dias da vida dele. Isso deve estar ocorrendo com muitos médicos, não é mesmo?
Adeildo Lucena – Na verdade, tem muitos funcionários na SES que foram contaminados, e ninguém contamina ninguém porque quer, ou por falta de cuidado. É que realmente as pessoas continuaram trabalhando, continuaram dando assistência, cuidando… Porque não tem como parar a Saúde. E acabou contaminando o próprio secretário, que realmente deve está passando por uma situação bastante difícil. Era para acreditar que o secretário do Município também tivesse passando por isso. O que o secretário de Saúde de Estado vive não é fácil, ainda mais agora acometido da doença. E a gente vive essa situação de longa data. Na linha de frente isso é mais agudo, os médicos vivem mesmo essa pressão. Eu acho que no cenário ainda está bem, estão aguentando firme.
MidiaNews – Nesta semana a Prefeitura informou que 208 médicos estão afastados por algum motivo. Entre estes há médicos que “fugiram da raia”, pedindo licenças antes mesmo da pandemia chegar?
Adeildo Lucena – A licença que foi concedida ao médico é a mesma licença que foi concedida a outros servidores, inclusive os que não estão na linha de frente, como por exemplo, os professores, promotores, entre outros vários que têm fatores de risco ou a idade avançada. Legalmente foram afastados, não tem nenhum afastado ilegalmente. Isso não é fugir da raia, isso é um direito que assiste ao profissional, seja ele de qualquer área, mas na área médica também tem, nós não somos de ferro. Mas todos eles estão bastante resguardados no aspecto legal e moral, porque não dá para expor um médico com idade avançada ou com patologias.
Eu vejo o secretário Pôssas falar muito isso, sobre fugir da raia, mas se ele acompanhasse o médico durante um dia na Policlínica, eu acho que ele nunca mais falaria uma coisa dessas.
MidiaNews – É justificável o profissional se recusar a trabalhar diante da falta de condições?
Tem muitos funcionários na SES que foram contaminados, e ninguém contamina ninguém porque quer, ou por falta de cuidado
Adeildo Lucena – É um direito legal do médico: se não tem condições de trabalho, ele tem inclusive que recusar. Acho que o grande problema é que o médico acaba incorporando isso, ou não usando isso para fazer com que melhorem as condições de trabalho. Não tem como o profissional trabalhar sem condições, porque isso não reflete só no profissional, reflete na população também. Então as condições de trabalho quem tem que dar é o poder público, é a obrigação deles. Se não tem condições de trabalho, ele deve se negar a atender. Mas a maioria acaba atendendo, principalmente nessa pandemia. Passa por cima de muitas dificuldades e “toca o barco”, porque se não a “canoa já tinha furado” faz tempo, estávamos no fundo do rio essa hora.
MidiaNews – O que é possível fazer para suprir a falta de profissionais nas unidades neste momento?
Adeildo Lucena – Se casos novos avançarem, se a ocupação das enfermarias dos leitos de UTI avançarem, não há o que fazer. É óbvio que se chegar nesse extremo como aconteceu na Itália, os colegas que estão afastados certamente vão retornar e encarar o problema de frente. Isso é uma das alternativas, uma vez que os outros não têm condições. É uma coisa que tem que pesar bastante, mesmo com os riscos eles vão voltar. A outra opção é a Prefeitura oferecer um valor que compense o médico se arriscar, porque aí ele vai escolher se arriscar mais ou não. Porque ninguém está deixando de cumprir com sua obrigação. Se fizer um “extra” vamos pensar em uma progressão de carreira, não sei, algo nesse sentido. O que não dá é ir para a linha de frente e pronto e acabou.
Eu creio que se as escalas ficarem realmente defasadas e se os médicos adoecerem, os que estão com a licença deverão voltar e ajudar. Ainda há muitos trabalhando, mas é uma das opções.
MidiaNews – Dos relatos que o senhor tem ouvido, como os médicos da linha de frente estão fazendo para proteger seus familiares e não levar o vírus para dentro de casa?
É um direito legal do médico: se não tem condições de trabalho, ele tem inclusive que recusar
Adeildo Lucena – Tem colegas que já não estão com suas famílias, estão em outro local. Há outros que chegam em casa, trocam de roupa, tomam banho e procuram ficar afastados de seus familiares. Essas são medidas que todos estão tomando. Se caso contraírem, eles ficam isolados. Mas em sua maioria é isso que eles têm feito.
Mas é bem complicado você chegar em casa e sentir que, de uma certa forma, mesmo tomando todos os cuidados, você pode contaminar a sua família.
MidiaNews – O Governo chegou a alugar quartos de hotéis para estes profissionais?
Adeildo Lucena – No início sim, quando não precisava. Agora pode começar a precisar. Mas isso pode virar necessidade, pela forma como a pandemia tem evoluído aqui, os novos casos aumentando, a maioria dos leitos ocupados, com o adoecer dos profissionais de Saúde…
Mas eu quero deixar bem claro: não é pandemia que está desfalcando a policlínica, não. Essa equipe já está desfalcada há muito tempo. O que tinha de buraco nas escalas é de longa data, a falta de profissionais no setor público é pelo desistir, por condições de trabalho ruim, salários ruins, vínculos precários, e isso já vem de antes da pandemia. As pessoas confundem. O que eu digo é isso: nós sempre tivemos dificuldades para conseguir leitos de UTI. Agora com a pandemia aumentaram os leitos? Não o suficiente, então vai faltar mesmo.
MidiaNews – É verdade que está faltando médicos para atuar na linha de frente no combate ao coronavírus?
Adeildo Lucena – Os gestores, principalmente dos Municípios de Cuiabá e Várzea Grande, vão encontrar um bode expiatório, que é mais uma vez a classe médica, porque eles dizem que não têm medo para trabalhar contra Covid-19, e isso é uma grande mentira, médicos tem sim. O que não tem é a capacidade técnica, o gestor que é incompetente e não consegue abrir os leitos, não consegue fazer funcionar. Isso é um absurdo, dizer que falta médico em Cuiabá, porque não falta, pode abrir quantos leitos de UTI quiser. Agora, eles não tem essa capacidade, vai abrir onde? No meio da rua? Com que material? 30 leitos resolve o problema? Claro que não. Os médicos precisam ter EPIs para trabalhar, condições de trabalho, remuneção digna, isso é para qualquer profissional no mundo. Aqui, nós nunca tivemos nem coisa nem outra. Agora com a pandemia, o mínimo que temos que ter é EPI de qualidade para que possamos trabalhar.
Middia News